Para gostar de ler os clássicos – Steve Allen
Para gostar de ler os clássicos
Steve Allen
Revista do Livro nº 47, outubro/novembro/dezembro de 1982
Steve Allen, comediante, compositor e escritor da série de TV “Meeting of Minds”, autor de 22 livros, conta como você pode apreciar os grandes clássicos da literatura.
Eis uma questão intrigante. Na escola somos educados para realizar uma das mais assombrosas e complexas tarefas já conseguidas pelo ser humano — aprendemos a ler —, e ao mesmo tempo, aprendemos a odiar a leitura das obras que mais merecem ser lidas.
Já aconteceu com todos nós... quando éramos obrigados a fazer resumos de livros! Aconteceu comigo, também. O professor nos mandou ler Moby Dick — uma tarefa à qual eu me sentia completamente refratário. Por esse motivo, impliquei com a obra: não me mostrei receptivo e não gostei dela — e pensei que havia vencido.
A bem da verdade, perdi, pois essa luta para manter distância de Moby Dick custou-me a perda de todas as vantagens resultante do contato com esses livros excepcionais — e pouco numerosos — que denominamos clássicos da literatura.
Desde aquela época, venho relendo Moby Dick. E, além de gostar da obra, ela tem me proporcionado diferentes níveis de prazer, a cada releitura.
O que é um clássico? Trata-se de um livro que dá ao leitor aquela sensação inebriante de haver afinal desvendado parte do misterioso significado da vida, ainda que só por alguns instantes.
Um clássico é um livro que resistiu ao teste da passagem do tempo; um livro que todos continuam a procurar, através dos séculos, em virtude de seu poder característico de lançar luz sobre a alma humana.
Não são muitos os livros capazes de resistir a esse teste. Levando-se em conta todos os volumes que foram produzidos desde que o homem, pela primeira vez, entalhou um símbolo na pedra, concluímos que os clássicos são responsáveis por uma parcela infinitamente reduzida desse total: menos de 0,001 por cento. Isso equivale a alguns poucos milhares de livros. Desses, menos de cem compõem um conjunto de verdadeiro mérito.
Por que ler os clássicos? Por que tentar apreciá-los? Apresento três boas razões: (1) os clássicos nos abrem novos horizontes mentais; (2) os clássicos nos ajudam a amadurecer; e (3) os clássicos nos proporcionam uma melhor compreensão da vida, do mundo, de nós próprios.
Esta última afirmação é a mais importante. Ao ler um clássico da literatura, você tem a oportunidade de vislumbrar seu mundo interior — o que pode não acontecer de nenhuma outra forma. Sem dúvida, você pode sentir prazer com a leitura de praticamente qualquer livro. Entretanto, uma vez compreendido, um clássico o elevará para o alto. A Orestéia, de Ésquilo, foi escrita cerca de 2 500 anos atrás — e ainda me deixa aturdido.
Contudo, quase posso ouvir você dizendo: “Já tentei ler os clássicos. São de difícil compreensão. Não consigo me envolver com eles”.
Permita-me oferecer algumas sugestões que lhe serão úteis, no sentido de abrir as portas desse mundo maravilhoso. Escolha um clássico que você sempre se prometeu tentar ler; em seguida siga os conselhos do Dr. Allen.
Saiba o que você está lendo
Trata-se de um romance, de uma peça teatral, de uma biografia ou de um texto histórico? A fim de se informar sobre a natureza da obra, verifique o índice, leia a contra-capa e as orelhas, bem como o prefácio do livro, ou procure referências (ao título e ao autor) em enciclopédias.
Não leia na cama
Reconheço que a leitura dos clássicos pode exigir um esforço considerável. É necessário que o leitor permaneça atento, com todos os sentidos aguçados. Ao ler na cama, você apenas estará chamando o sono — e porá a culpa no livro, quando começar a cochilar.
Não se deixe abater por uma profusão de personagens
Dostoievski literalmente arremessa ao leitor cinqüenta personagens de importância em Os Irmãos Karamazov. Já no primeiro capítulo de Guerra e Paz, Tolstoi nos bombardeia com vinte e dois nomes — longos e complicados —, como Anna Pavlovna Scherer; Anatóli e o Príncipe Bolkonski. Não fuja. Continue lendo, pois, aos poucos os personagens tomarão forma e se diferenciarão, e você se sentirá tão à vontade com eles quanto se sente com seus próprios amigos queridos, que, por ocasião do primeiro encontro, também não passavam de estranhos.
Dê uma chance ao autor
Não se apresse a afirmar: “Não consigo compreender!” — mas continue lendo até o fim. Em determinados casos, no entanto, você talvez não esteja preparado para o livro que está tentando entender. Eu encetei três penosas leituras de A República de Platão, antes que a obra finalmente desvendasse seus mistérios para mim. E, asseguro-lhes, valeu a pena. Portanto, se você de fato não conseguir ler com facilidade o livro que tem em mãos, deixe-o de lado por mais um dia ou par mais um ano, e comece a leitura de outro.
Reserve bastante tempo para ler
Não leia aos pouquinhos. Como você espera entender algo, agindo dessa forma? Quanto maior o período ininterrupto despendido com a leitura, mais você se envolverá com o ritmo e o espírito da obra — e maior será o prazer usufruído. Ao ler Zorba, o Grego, experimente colocar um disco de músicas folclóricas da Grécia na vitrola; para Proust, alguma peça de Debussy, e para Shakespeare, músicas da era elisabetana.
Leia o que o autor leu
A fim de melhor entender os “antecedentes” do autor, conforme costumamos dizer, leia as obras por ele lidas, e que o impressionaram. Shakespeare, por exemplo, analisou a fundo a tradução feita por North da obra Vidas, de Plutarco, a fim de escrever os enredos de Júlio César, Antônio e Cleópatra e Sonho de uma Noite de Verão. É divertido saber que você está lendo o que ele próprio leu.
Leia sobre a época em que viveu o autor
Você é fruto da época em que vive — e o mesmo se aplica a todo e qualquer autor literário. O conhecimento da história daqueles tempos, dos problemas que eles e outros enfrentaram e de suas atitudes irá ajudá-lo a entender o ponto de vista do escritor. Observação importante: Você talvez discorde dele. Não há problema algum — pelo contrário, pois ele, pelo menos, fez você raciocinar.
Leia sobre a vida do escritor
Quanto mais enfronhado você estiver nas experiências pessoais de um escritor, melhor entenderá os motivos que o levaram a criar livros de um determinado teor. Você começará a achar fragmentos autobiográficos ocultos e sua obra.
É impossível, para qualquer escritor, deixar de revelar algo de si. A maioria das suposições sobre a vida de Shakespeare baseia-se em indicações encontradas em suas peças.
Releia: vale a pena
Todos os clássicos se prestam à releitura. Se depois de terminar o livro você se sentir fascinado, porém ainda confuso, releia-o imediatamente. Você descobrirá que ele se torna mais acessível.
Se você chegou a ler algum clássico, há um certo tempo, e adorou o livro, leia-o outra vez. Ele terá tanto de novo para lhe revelar, que você mal poderá acreditar que se trata da mesma obra.
Alguns clássicos para desfrutar
É possível encontrar relações quase perfeitas dos clássicos indispensáveis, compiladas por especialistas prestimosos. Consulte-as. Antes disso, porém, eu gostaria de apresentar uma pequena lista de clássicos que podem dar uma nova dimensão à sua vida. Embora alguns deles possam, eventualmente, ter-lhe provocado um trauma, em virtude do estigma da leitura obrigatória, tente lê-los. Insista. E persista.
Homero: a Ilíada e a Odisséia — o Adão e Eva da literatura ocidental. Escolha uma tradução recente, bem-cuidada.
Rabelais: Gargântua e Pantagruel— estrepolias pantagruélicas.
Geoffrey Chaucer: Os Contos de Canterburry— uma peregrinação de quatro dias, feita por trinta pessoas, pregando grossas mentiras umas nas outras. Não se surpreenda se os personagens que você encontrar nesta obra se assemelharem a pessoas conhecidas por você, na vida real.
Cervantes: Dom Quixote— o primeiro romance moderno, sobre o cativante e velho cavaleiro e seu “sonho impossível”. Como é que você pode dizer que viveu, sem lê-lo ao menos uma vez?
Shakespeare: Peças Teatrais — Shakespeare escreveu 37 peças de teatro. Algumas são um fiasco; outras fazem dele o maior escritor que já existiu. Entretanto, todas — sem exceção — têm elementos valiosos ao extremo para oferecer ao leitor. As melhores são: Hamlet, Machbethe Romeu e Julieta. (Procure assistir à encenação delas.)
Charles Dickens: As Aventuras de Sr. Pickwick — Ninguém é capaz de instilar vida nos personagens como Dickens.
Mark Twain: Huckleberry Finn — Talvez você tenha sido obrigado a lê-lo na escola. Descubra significados inéditos, na releitura.
Evidentemente, esse pequeno número de sugestões mal resvala a superfície. Não se limite a folhear ou a dar apenas uma olhada nas profundezas que os clássicos encerram: mergulhe! À semelhança de outras gerações anteriores de seres humanos inteligentes, também você sentirá o mais profundo alento, graças aos pensamentos e reflexões dos escritores mais talentosos da história.
Alguém observou que os clássicos constituem o diário do ser humano. Abra esse diário. Leia a seu respeito e compreenda a si próprio.
Steven Allen
Série: O poder da palavra impressa. International Paper Company.